— Estarei avisando o senhor assim que for localizado o pertence extraviado — disse uma voz sem emoção pelo alto-falante. — Preciso que o senhor assine este termo…
“Eu sei”, pensava comigo, “aguarde o segundo bipe”.
— …e aguarde o segundo bipe.
Fiz o que ela mandou: enfiei meu polegar no leitor, dei as costas ao monitor e alcancei a porta automática. A folha esquerda continuava emperrada. Era a terceira tentativa só naquela semana, e eu estava de saco cheio. Alcancei a rua e tossi duas ou três vezes antes de proteger o rosto. Caminhei pelas calçadas lotadas enquanto pensava em algum lugar para levar aquela casca cheia de rugas e manchas e… Caramba, algo decente para vestir nessas emergências não custaria menos de duas mil pratas.
Fiquei pensando em alguém que pudesse resolver as coisas para mim. Lembrei-me de Eric e entrei em um beco, cerca de cinco ou seis quadras à frente. Algumas batidas na porta e ele apareceu, de roupão e pantufas. Deu um pulo para trás, assustado, mas seu rosto ganhou linhas tranquilas quando eu disse quem era. Entrei, sentei, esperei que se sentasse também. Veio com duas xícaras e cigarros, mas recusei. O corpo era de clínica.
— Corpos baratos, centenas de regras, multas absurdas, te fizeram de otário.
Falei da minha situação: sem dinheiro, nenhuma vontade de morrer e um filme por terminar.
— Você sabe que ninguém vai assist…
Eu não me importava.
—Contaram-me que foi um acidente de carro. Que Hellen dormiu no volante. Ela está bem?
Contei que ela falecera antes de ser socorrida, que não me deixaram levar o corpo. Temem as transferências clandestinas e incineram os corpos como se não valessem nada. Não dei à história um tom dramático, não recebi uma expressão de surpresa. Ouvíamos histórias como aquelas todos os dias.
Uma figura seminua apareceu do corredor. Eric pediu para que nos deixasse, chamando-o por Kim. Achei aquele um belo nome. Perguntei a meu anfitrião se ele tinha alguma certeza do que havia por dentro. Rimos os dois.
— Não importa. Não há como saber. Nunca soubemos.
Eric sorria com todos os dentes. Parecia bem. Diferente das memórias que eu tinha dele e de nossos amigos, quando perdemos nossos trabalhos e o otimismo que veio com as novas máquinas e todo o resto.
E, sobre o rapaz, estava claro que fora esculpido. Parecia caro. Perguntei a Eric de onde ele tirava a grana para pagar os caras. Balbuciou que se virava. Não perguntei, porque tinha uma ideia. Quase ninguém banca nada com grana lícita nesses dias. Eric gozava de algum conforto. E eu, que seguia as regras…
Fiquei ali, deitado sobre o estofado de couro, aspirando nicotina e mofo. Pensei nos incidentes das últimas semanas: Hellen morta, minha mãe sem entender direito o que eles queriam fazer comigo, essa coisa toda de alugar um corpo e transferir consciência… Depois de tantas semanas sem uma vida para retomar e com poucas opções para passar o tempo, começava a pensar que deixar meu emaranhado ferido de ossos e músculos naquela clínica havia sido mesmo uma má ideia. Prometeram uma semana para terminar as cirurgias e devolver meu corpo. Sem riscos, sem dores. Levaram um bom dinheiro. Seis semanas. Nada.
— Já consertaram a porta?
Tive de pensar, por um instante, no que ele estava falando. Balancei a cabeça.
— Está daquele jeito há semanas. Não vão arrumar aquilo. Nem vão achar seu corpo. Esqueça.
Aquilo estava me cansando. Chegara lá por um motivo. Ele sabia. Eric quase sempre conhecia um cara que conhecia um jeito de resolver um problema. Indicou-me um sujeito que arranjaria um corpo melhor e definitivo, por baixo dos panos. Era o que me restava. Em troca de algum serviço sujo, claro. Sintéticos, prostitutas, roubos, uma cobrança de dívidas. Procurei entre o que restava de mim, mas não encontrei qualquer bom motivo para recusar a sugestão.
—Dê-me tempo para algumas ligações, e eu encontro uma boa sucata. Algo que valha o esforço.
Horas depois, eu estava em frente a uma garagem distante dali. Nada estranho. Uma rua malcuidada como todas as outras. Mau cheiro. Fuligem. Concreto. Frio. Jamais estivera naquele lado da cidade, mas não sairia dali tão cedo. É difícil voltar à rotina uma vez que se escolhe sumir dos registros. Ao menos eu teria tempo para algumas cenas e a rolagem dos créditos.
Olhei as referências na parede. Encontrei a garagem. Passei por dois brutamontes na entrada e mergulhei naquele buraco escuro. Havia uma porta ao fundo com uma luz. Espiei de longe e pude ver alguns corpos sem alma, pendurados em ganchos: crianças de olhos claros, réplicas de modelos, rostos comuns. Quando me aproximei, um senhor passou pela porta. Ouvira meus passos.
— O que faz aqui?
Pareceu desconfiado. Disse a ele que falara com Eric, que precisava de um corpo decente.
— Ah, você é o rapaz do Eric. Do corpo alugado da clínica. Sei do seu caso.
Fez uma pausa.
— Procurando um dos bons, é? Uns anos a mais, bem vividos… Eu não o julgo — e gargalhou. — Não sei se posso ajudar. São tempos difíceis, você deve saber. Muitos procuraram serviço, poucos têm algo a oferecer.
Deslizou seus olhos miúdos do meu cabelo ressecado até a ponta dos meus sapatos. Senti um calafrio.
— E, por falar em corpos, disseram-lhe quanto estão valendo os de segunda mão?
Ouvi passos. Virei-me. Os dois capangas tapavam a entrada e, armados com pedaços de ferro, baixavam as portas. Engolido pela escuridão da garagem, percebi que ele tinha razão. Eram tempos difíceis.