Tão distraído estava, lidando com as flores em frente à varanda, que por pouco não ouvi o entregador de jornal me perguntar se sabia que João Carlos batera as botas. “O vizinho?”. Confirmando-me e sem dar meias palavras, narrou o assalto, a reação falha e as duas balas no peito. “Estranho que os ladrões tenham fugido sem nada, não?”. Eu não tinha qualquer afeto pelo morto e, sinceramente, sentia-me indiferente à notícia, mas me rendi à ideia de aparecer no funeral.

Um homem em minha idade e situação não se depara com muitas oportunidades para sair de casa. Não que eu ame eventos fúnebres, mas já não há tantos lugares além da missa, nos dias de hoje, adequados ao uso de um terno. Pensando bem, aposto que nem João Carlos ficou para o próprio funeral, se teve escolha. Convenhamos: que fantasma perderia tempo com o próprio enterro quando, depois de viver o inferno, sabe que há algo melhor pela frente?

Antes que eu pudesse perguntar da cerimônia, o moleque pedalava rua abaixo, atirando jornais às portas. Despedi-me do jardim e busquei, na velha agenda telefônica, alguém que me desse a resposta. A escuridão da sala me levou a deslocar o traseiro à poltrona de leitura próxima à janela, onde ouvira tantas discussões de João Carlos e a esposa noite adentro… Letra “C”. Ali estava o nome de Cláudio Esteves e seu número de telefone. Liguei para o Esteves porque sabia que era sujeito acessível e próximo ao defunto. No fim das contas, o boa praça me ofereceu uma carona. “Passo aí às duas”, ele disse. Uma preocupação a menos, já que o Fusca me deixara na mão nas últimas vezes que ousara sair de casa.

Eu poderia perder o meu tempo a narrar as banalidades entre um evento e outro. Poderia dar-lhes a cor e costura de meu terno, transcrever as palavras doces de minha esposa, ao menos os ecos em minhas lembranças, sobre o quão bem eu ficava ao vesti-lo. Poderia falar das coisas que Esteves me disse ou como os bancos de seu carro cheiravam a novo. Quem sabe, descrever as ruas que atravessamos e narrar a vez que eu vira João Carlos passar por ali, alternando passos atrapalhados e um cacoete irritante de conferir o relógio de minuto em minuto, segurando um presente à esposa e levando no rosto um sorriso de orelha à orelha. “Carola está grávida!”, ele bradava. Isso fora há muito tempo.

Familiares, empresários, boêmios e curiosos se faziam presentes, todos calados ou murmurando com cautela enquanto o padre proferia um discurso. Estávamos no cemitério próximo ao hospital público, e o sol forte, o mesmo que me levara ao jardim pela manhã, agora sem qualquer consideração ao morto e aos enlutados, permaneceria escaldante durante todo o funeral, obrigando as senhoras a abrirem sombrinhas e suando os corpos sob vestes escuras. No centro do círculo, um grande buraco e um belo caixão, suponho que feito de madeira nobre e cara. Carola não chorava, ainda que estivesse prestes a explodir. Não sou eu que digo, eram seus olhos. Quem chorava, todavia, era a filha – e como chorava. Já se entende, aos dez anos de idade, que a morte é sem volta.

Se no momento eu deixava escorrer uma lágrima, talvez tocado pelo choro da pequena ou pela voz grave do presbítero, confesso que na noite anterior tivera vontade de bradar impropérios ao vizinho. Não deveria mesmo tê-lo feito: o sujeito, ainda que arruaceiro, era boa pessoa. É que nada me irrita mais do que ser acordado no meio da noite por uma discussão de casal, ainda que algumas me divirtam no horário nobre, quando posso escutá-las do conforto de minha poltrona de leitura. Mas, naquela ocasião, passava das duas da madrugada. O João Carlos provavelmente tomou umas cervejas a mais e se meteu com alguma menina, como de praxe.

Quando parei diante do caixão, enxerguei-me no reflexo do verniz. Lembrei-me dos meus trinta e poucos anos e do que se espera da vida nessa idade, dos planos que a gente faz, dos filhos que crescem e de como tudo esbarra nas nossas fraquezas, no tédio do dia-a-dia e no pecado. Não fui um bom marido ou um bom pai e, assim como João Carlos, eu vivia ferrando com tudo, a diferença é que ele não pôde viver o bastante para ver a própria vida desmoronar.

Talvez eu estivesse dizendo bobagens, mas não pude suportar aquilo. Deixei de lado a carona e fui embora a pé. Cruzei com rostos conhecidos e provérbios chineses, mas estava tão perdido… Lembro de entrar em um pequeno mercado e pedir uma garrafa do uísque mais barato daquele lugar. Não entendam mal, eu não sou de voltar atrás, mas quando vejo um dos nossos deitar sob terra, fico insone e nada além de doses e mais doses de uísque me faz desligar. Além disso, não havia ninguém por perto que pudesse sofrer agora.

Nada, porém, fazia correr os ponteiros do relógio ou silenciar os pensamentos. Eu sabia o que precisava fazer. Corri outra vez à agenda telefônica e à luz do abajur, pulei direto à letra “E” e o encontrei. Eduardo. Hesitei por um instante, mas arranquei o telefone do gancho e, mal terminei de discar, a moça do outro lado me informou que o número não existia. Explodi de raiva. Demorei, para me dar conta do erro. O número estava anotado há alguns anos e fora escrito antes de implantarem o nono dígito. Fiz tudo outra vez e aguardei a voz de meu filho no outro lado da linha.

— Alô?

Emudeci. No fundo, eu queria pedir desculpas. Desejava prometer outra vez que nunca mais beberia de novo, desta vez para valer, e que eu nunca mais falaria aquelas coisas horríveis da mãe dele…

— Pai, é o senhor? Tá me ouvindo?

…e que eu nunca mais dormiria com outras mulheres. Sim! Ele poderia contar à mãe dele e pedir que ela voltasse a morar conosco. Seríamos todos uma família, como era antes de eu fazer tudo errado e ferrar nossa vida…

— Eu escuto a respiração. Me responde, vai…

…e eu sentia a necessidade de regurgitar tudo que ficara preso esses anos todos, enquanto via, calado, Eduardo tentando se curar dos traumas do divórcio. E eu adoraria ver minha nora, causar uma boa impressão, eu poderia…

— Vamos, eu preciso te contar uma novidade. Uma das boas, pai!

Dei-me um instante de paz. Parei para ouvi-lo e deixei que algo bom chegasse. Eu não era João Carlos, afinal de contas, e eu ainda não estava morto.

— Oi, filho, – respondi finalmente, – eu quis ligar esses anos todos, eu… não sei o que dizer.

— Então dá um sorriso, vai.

Ele hesitou um instante.

— Tua nora tá gravida, pai. Tu vai ser avô.